O luxo morreu! Foi esta a constatação que fiz quando perguntei a uma vendedora ambulante, qual era o preço de uma bolsa Louis Vuitton, versão falsificada. Por certo não esperava que custasse cara. Achei-a bonita, pois tratava-se de falsificação de um ícone da famosa marca francesa, cor marrom-tabaco e acabamento em couro. Aliás, nem esperava que fosse couro de verdade, mas a contra-resposta da vendedora me derrubou das tamancas: “Qual delas o senhor quer? Aquela ali da ‘Luiz Vitão’?”. Estava preparado para tudo, menos isso. Não se espera que um ambulante, vendedor de produtos falsificados, tenha uma pronúncia impecável do francês, mas “Luiz Vitão” é demais. Durante uma visita informal à “feirinha da madrugada” em São Paulo, é possível fazer uma reflexão séria sobre os caminhos do luxo e das grandes marcas atuais. Lugar muito conhecido das sacoleiras daqui do interior e das revendedoras de produtos falsificados, a feira é pródiga em produtos baratos e de procedência duvidosa. O preço é o grande atrativo e confirma-se como tendência mundial, não só com relação aos produtos dos famosos camelôs, mas também com os produtos das famosas marcas de luxo.
Segundo pesquisas recentes, realizadas pelas mais prestigiadas firmas de consultoria de negócios do mundo como a McKinsey ou a Eurostaf e os periódicos de negócios como a revista Business Week, é verdade que, atualmente, as marcas de luxo estão mais preocupadas em vender para muitos do que para uma reduzida clientela exclusiva. Estudos empreendidos desde a década de 1990 confirmam isso. Elyette Roux, autora do livro O Luxo Eterno (Companhia das Letras, 2005) diz que “a clientela dos anos 1980 consumia marcas de luxo ‘custe o que custar’; a dos anos 1990 já não queria comprá-las ‘a qualquer preço’, mas a dos anos 2000 exigia que os produtos tivessem qualidade e preço acessível. Roux é professora do Instituto de Administração de Empresas de Aix-em-Provence, na França e especialista em marketing e gestão de marcas de luxo. Ela confirma em seu livro as pesquisas que mostram um consumidor atual preocupado com o “value for money”, o famoso “valor agregado”, simbólico, afetivo e emocional. As pessoas gostam de identificar seus valores e aspirações nos produtos que compram e não só: os querem acessíveis. Depois da criação dos prêt-à-porter de luxo, que nada mais são que as conhecidas roupas “prontas para usar”, versão luxuosa, de tamanhos P-M-G (pequeno-médio e grande) das lojas de departamentos, o luxo nunca mais foi o mesmo. Marcas italianas e alemãs, de qualidade tão comprovadas quanto as francesas, são vendidas à quatro vezes mais baratas que estas. Essa concorrência acirrada entre as grifes de luxo alterou suas gestões internas e suas lógicas de mercado. Formaram-se grandes blocos comerciais e muitas delas uniram-se entre si constituindo verdadeiros mega-grupos-financeiros do luxo. A Louis Vuitton uniu-se às famosas marcas de champagne, relógios, jóias e até conhaque, transformando-se na poderosa LVMH (Louis Vuitton-Möet-Hennessy). Aliaram-se à Möet et Chandon, Krug, Veuve Clicquot, Canard duechêne, Ruinart e Mercier, e também à Pommery, mais recentemente, bem como à Tag Heur, depois à Ebel, Chaumet, grupo Swatch e Hennessy. A Prada comprou a Jil Sanders e a Church. A Chanel uniu-se às marcas Azzaro e Montana, Thierry Mugler e à Colbert. Perfumaria e Alta Costura são vendidas juntas agora. A Armani comprou o grupo L’Oreal, Procter&Gamble, Unilever e também a Shiseido e Lauder. São tantos e tão variados os produtos vendidos por essas marcas que já está se formando uma concorrência preocupante de produtos de farmácia (de luxo) com marcas populares famosas como o grupo Colgate e Tylenol. A banalização do luxo, proporcionada pelas mega-fusões, pelo gerenciamento financeiro que transformou a produção artística e artesanal de algumas marcas em verdadeiras indústrias deluxe, baratearam a tal ponto as manufaturas de grife, que é possível ver faxineira ostentando um Prada. Isso sem falar nas falsificações empreendidas pelo mais novo gigante financeiro: A China. Como chegamos a tal ponto? Voltemos ao passado. Tentaremos identificar a origem do Luxo nas sociedades antigas e compreender por que foi banalizado.
É possível encontrar manifestações do luxo desde as sociedades primitivas. Mesmo em uma época onde o alimento era raro, a fome uma realidade e o frio intenso, o luxo se fazia presente. Não o encontramos apenas em sociedades tecnologicamente desenvolvidas. Ele existe antes dos homens criarem as artes civilizatórias, a agricultura e a pecuária. Manifestava-se no enfeite, na festa, na largueza de espírito e no desperdício. Pense nos habitantes do período neolítico: levavam uma vida medíocre. Moravam em casa feita de palha, vestiam poucas roupas e tinham uma péssima higiene. Mesmo assim, em certas épocas do ano havia abundância material, comiam bastante em festas, gozavam o tempo livre e obtinham provisões sem grandes esforços muitas vezes. Nesta época não era o “esplendor material” o signo maior do luxo, mas a “ausência de previdência”. Mesmo hoje, é assim: deve haver mentalidade de delapidação para haver luxo. O filósofo Gilles Lipovetsky, autor do livro O Império do Efêmero (Companhia das Letras, 2002) afirma que “luxo não é ter muito, mas sim, viver uma vida larga, pródiga e generosa”. Algumas tribos da Melanésia praticam até hoje um ritual chamado de Kula que consiste em demonstrações de desperdício e ofertas de presentes entre si. Indígenas viajam às ilhas vizinhas para oferecer colares, braceletes , etc à outras tribos. Faziam uma espécie de “guerra simbólica”, tipo gincana de colégio, onde a permutação e o regateio eram usados como “arma”. Ganhava quem desperdiçava mais e oferecia mais presentes.
Com o aparecimento das civilizações egípcias e mesopotâmicas, e a conseqüente criação do Estado, o luxo se hierarquiza. Aparece agora como diferenciação classista. Os reis do Oriente e os faraós do Egito constroem templos, mausoléus e pirâmides gigantescas. Adornam seus palácios e a si mesmos com ouros e pedras preciosas. Luxo agora é sinônimo de entesouramento. Os reis ajuntam para si tesouros e mais tesouros. É importante lembrar contudo que uma coisa não anula a outra: agora, além de desperdiçar e fazer festas regaladas, deve-se guardar e conservar. Max Weber, sociólogo, afirma que “o luxo não é supérfluo – serve para manter a ordem social desigual”. Para isso os reis entesouravam.
Com a ascensão da burguesia, ao final da Idade Média, surge uma nova forma significativa de luxo: aquele que é fruto do talento e do trabalho. Os burgueses enriquecem com o comércio e igualam suas fortunas à dos nobres. A burguesia, ávida por reconhecimento e prestígio, imitam a classe social imediatamente superior. Copiam a nobreza em tudo, inclusive nas roupas. É por esta época inclusive que aparece a moda. O círculo vicioso das imitações é colocado em funcionamento já que a classe emergente imita a aristocracia e, estes, para diferenciarem-se, alteram seus modos e hábitos e são novamente imitados pelos burgueses e assim por diante. As engrenagens da moda são acionadas e não só: a burguesia corre atrás de cultura e obras de arte, símbolos da ostentação e do reconhecimento nobiliário. Os novos ricos tornaram-se mecenas patrocinadores de grandes artistas do Renascimento e do Barroco. Mandavam pintar igrejas e construir túmulos e lápides financiadas com suas fortunas. Possuir uma obra de arte assinada por um grande pintor ou escultor era a representação embrionária mais próxima do que chamamos hoje de “grife”. A assinatura do artista dava status à família que o patrocinava e imortalizava sua memória. Vejam por exemplo o logotipo do automóvel da Citröen Xsara-Picasso. Os caracteres “Picasso” reproduzem a assinatura do grande pintor cubista espanhol. O luxo aqui é desclericalizado pois não está mais relacionado aos ritos sagrados nem aos reis-divinos. O burguês exigia do pintor que patrocinava a pintura de retratos dele e da família. Tal atitude consistia em uma das características do luxo do período como o individualismo. Luxo agora, além de desperdício e entesouramento, é fruto do trabalho e do talento além de expressão do individualismo humanista.
O nome do criador nos produtos de luxo consolida-se com o aparecimento dos estilistas. Até aqui vemos o luxo como elemento pertencente aos reis, príncipes e aos abastados. Esta é a fase aristocrática do luxo, como bem diz Lipovetsky. Após a revolução industrial, no entanto, o luxo irá se “democratizar”entre a classe média. Aparecem os Grandes Magazines e com eles as promoções e o barateamento dos produtos. Mesmo assim, o desperdício e o excesso são indispensáveis. Não se deixa de gastar com o desnecessário e nem de acumular, mesmo que pouco. O luxo democratiza-se antes de banalizar-se. Sua banalização ocorreu recentemente com a globalização, a pós-modernidade virtualizante, onde o plágio, a cópia, a mentira insertiva vale tanto quanto o “original”. Um mundo cintilante em magia monumental e mercantil, fez com que os menos favorecidos socialmente também sonhassem com os “luxos grand-fines”. A compra de empresas pequenas, detentoras de marcas populares, o estabelecimento de “segundas-linhas” para as marcas famosas e até a pirataria e a falsificação foram as grandes responsáveis pela “banalização” do luxo.
Desde que Tom Ford assumiu o comando da moda mundial, substituindo Yves Saint Laurent, houve uma mudança significativa no mercado de luxo mundial. Laurent representava o passado, o luxo artístico e os ateliês de oferta, que produziam as coisas quase que artesanalmente e para poucos clientes. Ford, por outro lado, veio para mudar isso; inaugurou o futuro, o luxo de marketing e a lógica de mercado no mundo da moda. O qualitativo foi substituído pelo quantitativo. As empresas produzem aos montes peças que, antes, eram consideradas raras e exclusivas. Como exemplo podemos citar a BMW e a Mercedes que venderam 900 mil automóveis só no ano de 2001. Quase um milhão de unidades cada uma. As marcas famosas fazem promoções, parcelam em até quatro anos pois querem vender. Cada vez mais pessoas adquirem artigos de luxo. Todos querem o direito a ele. O luxo, hoje, não está mais à serviço de uma imagem de classe, mas sim, de uma promoção de imagem pessoal. Parece até, em alguns casos, que virou “obrigação”.
As promoções e o seu barateamento “viciaram” tanto os consumidores que mesmo os abastados não querem pagar muito caro por ele. A consagração da virtualidade pela Internet e do mundo virtual pelos jogos eletrônicos criaram um sentimento de que “nada é o que parece”. Se antes uma criança ostentava um brinquedo caro ganhado em época de Natal ou aniversário, hoje a criançada diverte-se com jogos e artefatos de uso coletivo como é o caso das casas de jogos ou lan-houses. Parece-nos que atualmente o importante não é a “posse”do objeto e sim a “interatividade”. Do mesmo modo como as crianças em seu universo, os adultos não precisam mais ter dinheiro ou desperdiçá-lo para ser admirado como detentores do luxo. Pode-se apenas “parecer rico”. Esta é uma manifestação dos tempos pós-modernos em que se é possível viver de glamour sem de fato ser muito abastado para isso. Sai-se facilmente de uma Mercedes comprada em sessenta vezes, com uma parcela do seguro vencida, usando um terno Armani comprado em promoção de fim de estação, perfumado com uma versão mais barata de um parfum famoso e entrar numa das maiores casas noturnas de São Paulo como a Pachá com o convite vip que uma amiga sua que trabalha lá dentro consegui para você depois que esperneou na frente dela por isso e quase teve um treco, uma semana antes.
Slavoj Zizek, conhecido intelectual de esquerda da atualidade, tem uma teoria interessante sobre a banalização do luxo pela pirataria e a falsificação: diz-nos o teórico que o trabalho dos falsificadores e dos camelôs e sacoleiras pode ser comparado aos dos pensadores comunistas. Explica-se: como estes não conseguiram derrotar o capitalismo e acabar com as sociedades de classes, a falsificação dos produtos faz isso, pois ela irrita as grandes empresas e os grandes conglomerados econômicos pois que se aproveitam de suas “grifes”, construídas com muito esforço publicitário e marketing e de quebra, socializa a posse dos artigos de luxo desejados pelos menos abastados, mesmo que sejam falsos. Alguns pensarão ser isso uma grande besteira. Tão grande quanto à que me disse a vendedora ambulante: “O senhor vai levar a bolsa ‘Luiz Vitão’?”.
Augusto Vasconcelos Neto é professor de História da Moda do curso superior de Moda da
Unirp em São José do Rio Preto-SP e faz mestrado em Comunicação pela Unimar, Marília-SP.
Leituras sugeridas:
O Império do Efêmero, de Gilles Lipovetsky (Cia das Letras, 2002)
O luxo eterno, de Gilles Lipovetsky e Elyette Roux (Cia das Letras, 2005)
Do brega ao emergente, de Carmen Lucia José (Marco Zero/Nobel, 2002)
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